Colunistas VDS: Relato de Gustavo Lis sobre preparativos e a regata Cape2Rio 2023.
Relato sobre preparativos e a regata Cape2Rio 2023.
Por Gustavo Erler Lis.
25 janeiro de 2023.
Na Refeno de 2021 fizemos grandes amizades. Uma destas foi conhecer o Julio, também conhecido como “Tio”. Fazíamos o café da manhã em nosso barco e vários expressos depois ele, que já fez mais de 15 Refenos, 5 travessias, várias regatas, falou: - Vou fazer a Cape2Rio!!. Comentei: “Ué, estou dentro”. Me olhou e na hora não falou nada. No outro dia, outro expresso, ele veio e disse - Confirma mesmo que vai? - Vou!!
E assim, quase 1 ano antes, começaram os preparativos para levar o barco do Brasil para África do Sul e voltar na regata que largaria da 02/01/2023. Muita documentação, certificações e checklists para adequar o barco e tripulação para regata. Além do barco, precisávamos ter cursos reconhecidos pela OSR em primeiros socorros e segurança no mar. Sobre esta preparação poderia escrever várias páginas, mas vamos resumir.
Fechamos a tripulação em quatro pessoas, Tio, Gustavo, Marco e Décio e inscrevemos o barco pelo VDS. Fomos ao Yacht Clube do Rio de Janeiro para fazer a medição, que seria IRC.
Combinamos que nosso zarpe seria no final de outubro de 2021. Corremos muito, principalmente atrás dos prazos dos fornecedores e no final, a data estava se confirmando.
A ida:
Lista de compras feita, barco abastecido com muito diesel e água. Em nossas contas teríamos uma boa autonomia caso algo acontecesse.
Dia 31/10, 14:00, depois de um almoço de despedida com amigos na marina Farol, zarpamos.
Uma frente fria forte, fora do padrão estava subindo a costa. Nossa saída seria de Paraty e saímos pouco antes da frente. Saímos dia 31/10/2021 com uma estimativa de 20 a 25 dias. Olhando a previsão seria mais duro, mas teríamos depois um bom tempo para seguirmos viagem. Confirmado. Vento forte e mar alto durante 3 dias. Muito rizo e muita água. Nosso rumo seria fazer algo passando perto de Tristan da Cunha e ficamos próximos de uma baixa pressão que permitia nossa velejada ali. Em certo momento vimos que íamos passar muito perto de Tristan e pensamos em visitá-la. No final a previsão foi favorecendo uma ida mais direta para Cape Town e abortamos Tristan.
Quanto mais a latitude aumentava, mais o frio se apresentava. Os turnos da noite eram sempre com muita roupa, gorros, luvas e muita sopa para esquentar.
Como no barco apenas o Tio já tinha atravessado o Atlântico, na longitude 0º, fizemos a brincadeira de passagem. Ok, sempre se faz na latitude 0, mas para nós estava sendo um evento ficar acompanhando a longitude W diminuindo e resolvemos descontrair. Vestimos o Tio de Netuno que com sua coroa e tridente feitas de caixas de Vapza, fez nosso “batismo”. Agora éramos conhecidos como Lula, Peixe Voador e Baleia.
Recebemos do comandante Hans, do cat Aventureiro 4, que estava a nossa frente a informação que 60 milhas antes já era possível ver a Table Mountain. Outro evento para nós, pois isto aconteceria no turno da madrugada, mas perto das 05h da manhã. Ainda escuro, podíamos ver o clarão da Cidade. Vento fraco e escorado no motor a vontade de chegar apareceu. Não era meu turno, mas pedi que me acordassem, queria ver a Table. Manhã de sol perfeito e lá estava ela, aparecendo aos poucos. Sentimento de “chegamos”. O Tio que não nos deixava passar de 1800rpm no motor já estava a 2200. Só falava em chegar para tomar um chopp com batatas fritas.
Um procedimento interessante na chegada. A OSASA, órgão que gerencia os portos da África do Sul e no qual antes de nossa partida informamos de nossas intenções, havia nos dado OK para chegada e, pasmem, nos foi fornecido um prático para adentramos ao porto. Infelizmente, este mail veio durante nossa travessia e eu não tinha este conhecimento. Com nosso Navionics e, informando ao Port Control nossa aproximação, chegamos ao Royal Cape Yacht Club.
Não tivemos problemas na ida. Coisas simples que fomos resolvendo ou anotando em nosso super checklist para ser feito em terra. Sempre verificando o estado do barco, adriças, escotas e velas, chegamos a Cape Town no dia 22/10, por volta de 15h da tarde depois de quase 3600 milhas navegadas. Tap beer and chips, here we are.
Royal Cape, cidade de Cape Town e África do Sul:
Impressionou muito.
Primeiro pela receptividade do Royal Cape, que pelo seu Comodoro, Neil Gregory, e pela gerente da regata, Jennifer Burger, nos ajudaram desde os primeiros minutos de nossa chegada, dando suporte com a Imigração até a indicação de fornecedores.
Também pela receptividade de Vitor Medina e sua esposa Tina. Este, ex-Comodoro e já participante da Cape2Rio, de início já nos convidou para participar das regatas locais das quartas-feiras em seu barco. Isto logo se transformou em uma amizade forte. Acabamos fazendo várias festas juntos, de aniversários, a natal e réveillon. Já a Tina, que sempre de alto astral, nos indicava bons lugares e eventos na cidade para irmos.
Depois, pela cidade e arredores, que fornecia muitas atrações, natureza, restaurantes. Elefantes, Bungee Jump, Cabo da Boa Esperança. Mais uma seção que poderia escrever várias páginas.
A volta: Regata Cape2Rio 2023
A regata está comemorando sua 50ª edição. Na revista periódica do clube, foi criada uma seção especial falando sobre todas as edições da regata, com histórico de resultados, número de participantes e até curiosidades que aconteceram em cada evento (SAIL Magazine – Royal Cape Yacht Club (rcyc.co.za). (Deixarei uma versão física para nossa biblioteca, vale a leitura).
Chegamos com uma certa folga para o início da regata. Isso permitiu resolvermos todos os itens do checklist que fizemos na vinda e até o dia 10 de dezembro já tínhamos arrumado todo o barco, faltando apenas as compras que seriam feitas mais perto da largada. Tempo livre, bora conhecer Cape Town e arredores. Aqui, novamente, muitas mais páginas poderiam ser escritas.
No dia 19 de dezembro, o Royal Cape realizou uma festa de confraternização das tripulações, a Blue Peter Party. Na recepção, uma ilha de caipirinha e na sequência finger foods variados. Neste momento ótimas conversas com as outras equipes. Além dos sul-africanos, indianos (SV Tarini) e italianos (SV Translate 9) também estavam lá. Cada equipe então fazia sua apresentação para os demais, falavam de suas experiências e expectativas sobre a regata. Alguns novatos, como eu, outros que já tinham feito a regata várias vezes. O Skipper do SV Atalanta, já havia feito várias vezes com equipes e desta vez quis mudar “um pouco” e fazer a mesma single handed. O veleiro de 33 pés todo preparado fez bonito, praticamente liderando toda a regata dos monocascos, até 20milhas da chegada, no qual foi transposto pelo SV Ray of Light. Mas manteve sua colocação na IRC e ORC em primeiro com folga.
Nos 40 dias que ficamos em Cape Town, deu para ver o regime de ventos, e era impressionante. Creio que em torno de 80% dos dias, um vento de quadrante S vencia a Table Mountain e em sua decida “roncava” na baía onde seria a largada. No clube todos diziam que este seria o vento da largada. Show!
Nosso barco, modelo Finot 16m de alumínio de pouco mais de 13 tons, deitava no píer. Literalmente, vacas voando. Precisávamos retirar as velas e não conseguíamos devido ao vento.
Dia 2 de janeiro chegou. Dia da largada, o mais quente dos dias desde que chegamos lá e a previsão dizendo que não teríamos o vento forte predominante e, além disso, que haveria uma bolsa sem vento logo depois da largada. Boring...
Às 10:00 da manhã, o clube lotado, fomos abençoados por um padre, que em sua mensagem, pedia ventos justos e uma travessia segura.
12:30h, depois de mais um almoço com familiares e novos amigos, soltamos as amarras do píer e nos dirigimos para a largada. Ventos fracos, quadrante NW, nos fizeram ir praticamente a 270 ou menos, nos empurrando para uma breve calmaria, mas que transpassando a mesma, chegaríamos a um vento S/SE.
Os catamarãs, Ray of Light, Translate 9 e Nemesis, se não me engano, foram os primeiros a chegar ao vento e logo se distanciaram. A alta de Santa Helena estava grande em nossas previsões e em algum momento nos pegaria. Os barcos mais para frente tentaram “encarar” esta alta. Nós mantivemos um rumo mais NW, dando preferência mais ao norte, para evitar ao máximo pegar as regiões de poucos ventos. No início ficamos um pouco descontentes com nossa estratégia, pois quem já estava buscando, mas longitude estava andando bem. Translate9 e Atalanta chegaram a abrir quase 200mn de nós, mas insistimos em manter nosso NW pois em algum momento todos seriam pegos pela alta.
Quase há 1 semana pós largada, ventos ainda do quadrante S mais fortes, nos deixaram manter nosso curso NW e ainda por cima com velocidade. Em um dos dias conseguimos média acima de 10, fazendo 235mn em 24h. Fora os cats, tínhamos sido um dos mais rápidos.
Depois disso, podemos dizer que foi uma velejada espetacular. Mar baixo, balão leve, as vezes pesado, os dias esquentando. Nada de pirajás tonaram as noites tranquilas. Para frente, previsão de calmaria. Os que arriscaram ganhar longitude logo cedo já apresentavam pouca velocidade enquanto nós ainda passávamos dos 6 a 8 nós. Ray of Light foi o primeiro a ver isso. Neste momento estávamos em 5 geral (Line of Honor) e ficávamos em entre 4 e 6 na IRC.
Chegou o dia da alta de Santa Helena pegar todo mundo. Ficamos 36h andando entre 1 e 3 nós. Muito sol, água espetacular. Dia de mergulho, verificar fundo, hélice, revisar tudo. Conseguimos passar a alta e logo ventos de S para SE nos permitiram ganhar mais longitude. Nisso Ray of Light já tinha passado em nossa popa e nossa estratégia foi se confirmando. Chegamos a ficar em 2 nos monocascos.
Nossas previsões diziam que tínhamos que chegar ainda lá pelos 19 a 20 graus S, e assim mantivemos, sempre correndo atrás do vento. Os dias passavam rápidos, O Ray of Light nos deixava atentos e nosso avanço sobre o pessoal de baixo nos motivava ainda mais. Tentamos ao máximo preservar equipamento. Tínhamos 1 balão leve e 1 pesado que eram novos e outros mais velhos que levamos para reserva, os quais nem usamos. Tudo indo muito bem. Já tínhamos passado mais de 2500 milhas e não estava acreditando na tranquilidade do tempo. Dias de sol, a noite mais fresca e sempre com mais vento, mar calmo... Como se pode andar tanto tempo com uma tranquilidade destas?
Foi somente mais perto do Brasil, ali por Trindade que as nuvens começaram a aparecer mais e logo os pirajás começaram sua festa. Eram de todos os lados. Tentávamos ao máximo manter balão em cima, mas em alguns momentos preferimos preservar equipamento. A estratégia foi dando certo. Já estávamos em 3 dos monocascos, as vezes 0,3 milhas de diferença do Ray of Light. Quando o vento acalmava mais, ele abria da gente. Nos ventos fortes, nos aproximávamos muito. O barco, além da genoa de enrolar, também possui uma buja de tempestade de enrolar fixa e ainda, mais um stay de proa entre ela e o mastro. Nossas manobras de balão eram complicadas pois tínhamos que baixar o pau e ainda trocar o amantilho de lado (devido a este stay). Nós quatro + piloto não éramos suficientes para dar um jibe rápido. Logo, nossos jibes eram praticamente de baixar balão, trocar o pau de lado, rodar balão, driça e escotas, dar o jibe na grande, trocando os runners e preventers e então subir balão novamente. Nosso recorde neste processo foi de 12min. Em alguns pirajás, tínhamos que arribar tanto, que praticamente íamos para 190 a 210 graus. Horrível, considerando que nosso rumo deveria ser 260 a 280, mas nos turnos de apenas 2 pessoas, optávamos por descer com o Pirajá e esperar o vento voltar para sua direção. Notávamos que nestes momentos o Ray avançava mais que nós. Eles estavam em 7, num First 44 bem preparado e creio que estavam com uma manobra mais otimizada que a nossa. Fomos segurando no que dava.
Em torno de 300 milhas do Brasil, já com a sensação de chegada, pois eu pensava, - “caramba, de Floripa para Rio Grande, que barbada”, a previsão dizia que teríamos ventos de NE para N de 30 a 40 nós. Estávamos felizes com isso pois era mais uma chance de aproximar ou até passar o Ray. Neste momento conseguimos parciais de quase 9 nós enquanto ele ficava nos 7,7. Bora por que o Translate9 está vindo babando atrás, um swan 65 pés de 2 mastros, 25tons, que quando embala ninguém segurava. Fazia parciais quase 10. Ele estava umas 110 milhas atrás da gente. Lembra que ele tentou ganhar longitude no início? Chegou a abrir mais de 200 milhas. Foi um dos últimos a subir para buscar o vento, o que fez ele ficar a esta distância.
Reta final, conseguimos aproximar do Ray e do Atalanta durante o vento forte. Agora a estratégia era o que fazer logo após Arraial do cabo, onde nas previsões não tinha nada de vento. Será que termos terral? Afastamos mais da costa para manter o vento. O GFS e o ECMWF se contradiziam. PWE e PWG pior ainda. Uma formação grande de nuvens sobre arraial, e começamos a ver raios. Balão leve estava em cima, estávamos há 10 milhas S da ilha de Arraial. Optamos por não acreditar no terral e a ideia seria manter o rumo 270 a 280. A tempestade chegou. Balão desceu bem, e na sequencia já estávamos no riso 2 com proa direta para as ilhas de Pai e Mãe, onde seria a chegada. Atalanta e Ray estavam muito próximos na última parcial entre eles e umas 10mn da gente. Será que vão parar mais perto da costa?
Em resumo, não pararam e nenhuma das previsões acertou. Este temporal nos manteve com uma boa proa até 20mn antes da chegada. Então começou a diminuir bastante, ficando de NW indo para N.
Tivemos que dar mais umas cambadas perto da chegada. Atalanta e Ray já haviam chegado e atrás de nós Translate vindo forte e com proa direta na chegada.
Vento fraco, fizemos manobras bem conservadoras. Nossa cambada tinha que enrolar genoa, então não podíamos deixar barco parar. No final deu tudo certo. Chegamos às 2:05 horário local, percorrendo 3699mn em 21d 17h. Conseguimos chegar em 3 dos monocascos na Line of Honor.
Resultados do Audaz II na Cape2Rio 2023:
3º Lugar na Line of Honor
4º Lugar na IRC Class
5º Lugar na Ordem de Chegada
Chegada ao Rio
Cerimônia de premiação 02/02/2023
Royal Cape: Royal Cape Yacht Club
Cape2Rio: Cape 2 Rio Yacht Race
Tracking da regata: Home - Cape2RioRace
Resultados: Leaderboard – Overall
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