Diário de Bordo: Situação desagradável na Zentrale do U 171, por Nestor Magalhães

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Na próxima quarta-feira, 05 de junho, o Veleiros do Sul recebe o mergulhador Nestor Magalhães para a palestra U Boats no mezanino do Salão Social. Para aquecer, confira um Diário de Bordo com uma história incrível narrada pelo autor:

Situação desagradável na Zentrale do U 171

Fazia um calor agradável, típico do verão da Bretanha quando o trem alcançou Lorient. Fui então apanhado pelo meu amigo Jean-Louis Maurette, um notável mergulhador francês, apaixonado por naufrágios de submarinos, o qual eu havia conhecido on line meses antes.

Para minha total surpresa, fomos direto da estação para um pequeno porto na localidade de Kerroch onde encontramos mais três mergulhadores: Hugues Priol, Philipe Marie e Jean-Claude Poupiniac.

Nosso objetivo era mergulhar no naufrágio do U 171, um U Boat Tipo IX C que ao retornar em 1942 de uma bem sucedida patrulha no Golfo do México, havia topado com uma mina ao largo da Ilha de Groix, Golfo de Biscaia. Mesmo naufragando em uma explosão catastrófica, 30 tripulantes sobreviveram, inclusive o comandante, Kapitänleutenant Günther Pfeffer.


U1 71

Embarcamos em um inflável com potente motor de popa e partimos do cais. Algum tempo depois, ao sairmos da proteção do quebra-mar, começamos a ser atingidos por ondas enormes. Os franceses pareciam não se importarem muito com aquele fato, mas eu sim. Era uma situação muito desagradável, para não dizer perigosa e logo a minha vontade em mergulhar no submarino começou a desaparecer. Um pouco depois foi  minha coragem que arrefeceu.

Minha nossa! O inflável investia como um aríete contra aquelas massas de água verde. Sacudido por choques medonhos, alçando a cada arfada a sua rechonchuda proa gotejante de espuma branca. Esta merda vai afundar, vai romper o casco rígido a qualquer momento! Discretamente afastei os  pés do emaranhado de pastilhas de chumbo dos cintos de lastro e deixei bem à mão o meu colete equilibrador semi-inflado. A coisa prometia.


Nestor mergulhando.

Quase uma hora depois alcançamos o ponto do naufrágio e o Jean-Louis navegando em círculos, conferia a todo  momento o GPS. Ondas esverdeadas enormes, orladas por espuma branca pulverizada pelo vento, sacudiam o frágil barquinho. Minha mãe!

Foi Jean-Claude quem lançou a bóia vermelha. Estávamos sobre os destroços e em segundos, o cabo aduchado no fundo do bote, começou a correr sem parar puxado pela âncora. Fiquei ainda  mais desmoralizado. Parecia que o U 171 estava em uma profundidade abissal.

Fui o terceiro a cair na água fria, torcendo que a minha roupa mantivesse algum calor. Meio assustado, meio desequilibrado pelo peso do cilindro de aço (sempre utilizei o de alumínio), tive dificuldade em nadar até a bóia. Que agonia! O colete equilibrador estava mais inflado do que airbag. Às vezes as cabeças dos mergulhadores que haviam me precedido e ou a tal bóia, desapareciam na cava das ondas. Depois era o bote que sumia. Senti que o colete não me mantinha à superfície e fiquei pronto para alijar o lastro. Que fiasco! Mas eu era determinado e algum tempo depois juntei-me aos outros, segurando na bóia.


Atrapalhado porque as luvas me tiravam o tato, preocupado em seguir a seqüência certa dos procedimentos, confiro os instrumentos, verifico pela décima vez se a câmera sub está presa na alça do colete, engato o painel dos medidores no mosquetão próprio e giro a coroa do relógio de mergulho. Então vem a ordem: mergulhar! Mergulhar! Polegares para baixo.

Caço a traquéia do colete e dreno o ar que escapa sibilando. Então tudo se acalma e fica azulado. Iniciamos a descida nos guiando pelo cabo que segue reto, tenso, desaparecendo nas sombras das profundezas. Um caminho interminável, gelado e escuro.

Minha nossa! Ali está a torre do U 171! A escotilha permanece aberta e os suportes dos dois periscópios, o de ataque e o de observação aérea, são perfeitamente visíveis. Neste último, a lente está intacta, ainda brilhante após 68 anos de submersão e agora é a casa de uma estrela do mar. Confiro os instrumentos: profundidade na areia 42 metros e a temperatura da água 12°C. Um frio terrível!


O U 171 está cortado transversalmente em um ponto ante-a-vante da torre. Interessante, é um corte quase regular e isto deixa bem a vista a escotilha da zentrale, a sala de controle. Lembra do eletrizante filme Das Boot, quando o U 96 realiza um mergulho de emergência? Os marinheiros voam por esta escotilha em direção a proa para aumentar o peso por  lá e acelerar a manobra.

A escotilha é grande e está aberta. Assim não prenderá o meu cilindro ou as mangueiras. Com a flutuabilidade neutra como de um peixe,  nado lentamente através da  escotilha. Estou entrando por um portal da História e este é um grande momento da minha vida de modesto mergulhador. Foi aqui que o Kapitänleutenant Pfeffer, Cruz de Ferro 1ª Classe, comandou seu submarino nas profundezas do Golfo do México.

O foco da lanterna vai mostrando uma desordem de placas, comandos, tubos, condutos e vigas. Não vejo vida marinha a não ser uma pequena moréia preta que, assustada, logo se esconde entre duas caixas de ferramentas. A água está mais gelada aqui dentro e sinto uma sucessão arrepios.

Estou fascinado! Ali estão o periscópio e os timões dos lemes de profundidade, os de proa e os de popa. Tudo está coberto por sedimentos marinhos e escamas de ferrugem. É necessário ter muito cuidado em não levantar estes sedimentos ou prender o equipamento em cabeleiras de fios que pendem do teto.

Procuro na massa gosmenta do assoalho apodrecido algum prato com a águia e a suástica impressa. Que tal achar um binóculo ou um equipamento de escape com o seu mini-cilindro, bocal e colete? Meu Deus, e se eu encontrasse uma sub-metralhadora MP 40? Um sextante seria o máximo, mas uma máquina Enigma, a consagração! Hummm, acho que até me contentaria com um apito de marinheiro.

A vontade e a imaginação começam a enganar os olhos. Ou não seria a narcose? Distingo uma pistola P 38 sobre a mesa. Não é nada, apenas uma sombra na lama submarina. Agora aparece em um canto um osso humano. É uma tíbia! Não ouso tocar, penso no marinheiro que ali ainda está. O guardião do U 171?

O foco da lanterna esbarra em uma caixa misteriosa. Pronto, ali está o meu sextante! Começo a planejar o golpe. Como estou sem saco de coleta, terei de escondê-lo em algum lugar do colete ou da roupa para não mostrar aos franceses.

Puxo a caixa com força, mas ao invés do meu sextante é um caudal de lodo marrom que levanta. Uma nuvem de vasa marinha, impalpável, mas cerradíssima. A visibilidade vai a zero! A luz da lanterna é absorvida por uma nuvem de partículas apodrecidas e chego a sentir o gosto acre de ferrugem. Estou cego, estou perdido dentro de um U Boat, a 42 metros, no fundo de areia branca do Golfo de Biscaia! Misericórdia!

Navego perto da linha do pânico. O medo físico é uma coisa atroz, mas agora é necessário, é preciso manter a calma! Tudo que aprendi em anos de mergulhos começa a desfilar na mente, fico imóvel na escuridão. Deitado no chão, sinto a lama macia e gelada na barriga. É desagradável. Não existe a possibilidade de gritar para os meus companheiros que estão fora da sala de controle. Eu terei de me safar sozinho.

E meu ar? Minha mãe! Sinto que estou respirando mais rápido, gastando sem controle. Que morte horrível!

Quieto, quieto! Espere os sedimentos baixarem, seu infeliz. Finalmente vejo um lampejo amarelado de lanterna á frente e parte da borda redonda da escotilha. Sei lá quanto tempo permaneci aterrorizado. Reajo instintivamente e em um salto, nado em direção a luz. É o Hugues quem esta lá fora. Em segundos me recupero e sem que ninguém perceba o meu pavor, junto-me ao grupo que agora vai iniciar a subida. Tinham retornado da  popa do U Boat onde exploraram a escotilha de carregamento de torpedos e até acharam um deles. Bem, quanto a mim, sem Walther P 38, binóculo, prato com suástica, Enigma ou sextante, nada, só a emoção. Puxa vida, isto só acontece em filme ou livros.


Juntos, pelo cabo, iniciamos a longa subida. Felizmente ninguém percebeu o que aconteceu comigo. Ainda haverá uma parada de segurança pelo caminho e tenho tempo para pensar sobre o nosso mergulho. Ele já estava ali, no fundo, uma sepultura militar, antes mesmo de eu nascer. Mesmo desmantelado por uma morte violenta, é elegante e letal,.com as quinas arredondadas do casco cobertas de vida marinha. É emocionante.

Então  deixamo-lo em paz. Uma máquina de destruição legendária e que repousará como uma catacumba submarina, calma,  serena e com seus segredos, até ser absorvida pelo tempo.

Nestor Magalhães