Colunistas VDS: A garra dos "peludos"
Por Danilo Chagas Ribeiro
A lancha de 40 pés desatracou do Veleiros do Sul, Porto Alegre, no final da tarde de 30 de janeiro de 2009, uma sexta-feira, com destino a Rio Grande, 150 milhas a sudoeste da capital gaúcha. Navegavam com o comandante pelo Rio Guaíba, além de sua esposa, sua filha com o namorado. A apenas 4 milhas do clube, navegando nas proximidades da Ilha das Pedras Brancas, a lancha encalhou na Coroa do Angélico, um baixio com meia milha de extensão. O comandante tentou desencalhar, mas a lestada de 25 a 30 nós atrapalhou, empurrando a lancha cada vez mais para cima do baixio, a oeste do canal de navegação, próximo à Praia da Alegria, em Guaíba, RS.
Chamado a prestar reboque, o clube enviou uma baleeira conduzida por um funcionário. Depois de algumas tentativas de desencalhe sem sucesso, o comandante e o namorado de sua filha desembarcaram na coroa para ajudar no desencalhe, na tentativa de somar esforços. Quem sabe, empurrando, pudessem oferecer aquele mínimo de força a mais que faria a diferença. Somente o fato de desembarcarem já favoreceria no alívio de calado, facilitando o desencalhe. Nessas ocasiões, tenta-se de tudo.
Como acontece frequentemente em manobras deste tipo, no que a lancha desencalhou, o conjunto rebocador-rebocado ganhou velocidade. E na disparada, o rapaz conseguiu embarcar na lancha. Começou aí o drama do comandante abandonado acidentalmente no meio do rio.
Quadro de tragédia
O funcionário do clube no comando da baleeira não sabia que o comandante havia ficado para trás, e continuou tracionando o reboque. Já estavam no lusco-fusco, e com vento acentuado. Sozinho na baleeira, lá adiante, não era possível dar conta do ocorrido.
A esposa do comandante correu para a proa da lancha e tentou avisar o marinheiro, que não ouvia ou não entendia o que ela gritava. A comunicação entre a lancha e a baleeira era péssima, por causa do ruído de seu motor e do ventão. No desespero, e em atitude de louvável iniciativa, a esposa do comandante voltou à cabine, apanhou uma faca e foi novamente para a proa, onde conseguiu cortar o cabo de reboque no balanço das ondas. O marinheiro foi então ao encontro da lancha e tomou conhecimento da situação. Mesmo sem lanterna a bordo, tentou, em vão, encontrar o comandante em meio à escuridão, em um rio com ondas de bom tamanho. Não teve êxito. O quadro para a ocorrência de uma tragédia estava pintado.
Restou ao marinheiro solitário avisar o clube da dramática situação. Às 23 horas, o guarda do Veleiros comunicou o fato ao Chefe de Marinharia Paulo Morel. Paulinho, como é conhecido no clube, tem a seu encargo a zeladoria de lanchas de associados. Não é funcionário do clube e a lancha em questão não estava a seus cuidados. Mora na Ilha da Pintada, bem longe do Veleiros do Sul, e sequer conhecia o comandante em apuros.
Em 18 minutos Paulinho cruzou as pontes da travessia do Guaíba, atravessou a cidade, apanhou seu filho Marcos, no caminho, e chegou ao clube. Certamente bateu um recorde no trânsito portoalegrense. Na corrida contra o tempo, Paulinho obteve autorização de um de seus clientes para utilizar sua lancha na busca ao comandante abandonado.
Dedução de um marinheiro experiente
Tendo procurado onde presumivelmente o comandante deveria estar, Morel resolveu procurá-lo junto à Ilha das Pedras Brancas. Depois de dar volta na ilha, sem êxito, o experiente marinheiro resolveu procurar o comandante a jusante do local onde o acidente ocorreu. Imaginou que, assim como a lancha foi para oeste, à deriva, pela ação do vento após o corte do cabo de reboque, o comandante deveria ter ido rio abaixo, para o sul, pela ação da correnteza do rio. Quem sabe o comandante teria agarrado-se a alguma bóia, pensou ele. A ação do vento no costado da lancha prevalecia à correnteza, o que não era o caso do comandante semi-submerso, deduziu Paulinho.
Paulo Morel é um marinheiro que já viu tudo acontecer no rio (na foto ao lado, Morel aproxima-se de uma lancha em pane seca no Rio Guaíba, em 2004). Seu filho Marcos varria as ondas com um farolete de mão quando Morel avistou algo diferente. Lá estava o comandante, de pé no baixio! Era uma hora da madrugada de sábado, 1º de fevereiro de 2009. Depois de 5 horas lutando contra ondas, frio, stress e cansaço, o comandante cinquentão estava lá firme, acenando.
"Herói é o comandante"
Uma vez embarcado, o comandante avisou sua esposa que estava são e salvo. Em seguida foi levado para sua lancha, que a essas alturas estava encalhada na Praia da Alegria, em Guaíba, RS, com os familiares a bordo. Ele mesmo pilotou a lancha até atracar no trapiche do clube, às 4 da madrugada!
- Paulinho, tu és um herói, disse eu a ele, quando eu soube da história.
- Eu, não, Paulinho respondeu. E em seguida emendou:
- Herói é o comandante que aguentou firme o tempo todo lá. O homem é um tanque!
Durante o tempo em que permaneceu no meio do rio, o comandante precisava dar pulos para se safar das ondas maiores. Com a baixa temperatura da água do rio e mais o vento frio, a hipotermia poderia ter liquidado com as chances de vida do comandante. No entanto, ele vestia roupa de neoprene, um detalhe importante no desfecho feliz dessa história.
Só depois de ver o corpo...
Paulo Morel, que já participou de inúmeros resgates náuticos, afirma que, por menores que sejam as chances de sucesso, só se deve acreditar que o náufrago morreu, depois de ver o corpo. A persistência do Paulinho foi fundamental para encontrar o comandante.
Encalhando onde era "impossível" encalhar
O canal de navegação dragado do Rio Guaíba tem 80m de largura, mais do que suficiente para uma lancha navegar. Mas na região em que se presume que o encalhe tenha ocorrido, existe um canal natural de navegação, com mais de 500m de largura, com profundidade variando de 3 a 7m.
Que atire a primeira pedra quem nunca encalhou onde era "impossível" encalhar. Encalhes acontecem para quem navega, apesar das cartas e dos instrumentos, da mesma forma que o cavaleiro cai do cavalo na hípica, e que o piloto capota no autódromo, onde seria "impossível" acidentar-se. Uma vacilada ao ajustar o rumo no piloto automático é suficiente para errar o rumo e sair do canal. Uma distração qualquer ao timonear o barco, ou um erro de leitura no chart plotter é o bastante para encalhar.
Desembarque em baixios
Há alguns anos um comandante amigo meu encalhou seu veleiro a poucas milhas ao sul do local do encalhe em questão, por alongar demais um bordo em direção a uma outra coroa do rio. O comandante decidiu então desembarcar e levar a âncora para longe do barco, para que o puxássemos tracionando o cabo de ancoragem pela catraca da escota da genoa. Mas o vento empurrava para cima do baixio e a operação não funcionou. O vento acabou por desencalhar o veleiro, que logo se distanciou do comandante que ainda caminhava sobre a coroa. Quando ele percebeu que o veleiro estava desencalhando, correu para o barco, mas não conseguiu chegar a tempo de embarcar. Pior do que isso, no lugar em que ele parou, a água atingia seu pescoço. Ele caminhou em seguida para todas as direções tentando voltar para o lugar mais raso onde estava antes, mas não conseguiu encontrar.
A bordo, eu tentava fazer pegar o motor de popa manhoso, sem sucesso. Não havia jeito de pegar, mesmo com partida elétrica. Finalmente, a pano e a motor, já depois do pôr-do-sol, consegui resgatar meu amigo. Foram momentos de sufoco para ele. E também para mim.
Paulo Morel lembra que se deve evitar o desembarque em baixios, e que ao desembarcar, o tripulante deve manter-se amarrado por um cabo passando pelas axilas e com o nó junto ao peito (e não nas costas) para facilitar o arrasto em caso de necessidade.
Por que ligar ao Paulo Morel?
Por que razão o guarda ligou para o Paulinho? O que o conhecido marinheiro teria a ver com o ocorrido? Que responsabilidade tinha ele sobre a situação? Certamente a boa fama e a longa experiência adquirida em resgates por Morel foram determinantes na decisão de chamá-lo.
Boa vontade, experiência e iniciativa
Parabéns ao Paulo Morel pela atitude exemplar que salvou uma vida. Além da competência e da experiência, teve muito boa vontade e iniciativa. Acreditou que resolveria o problema. O segredo do sucesso profissional de Paulo Morel (na foto acima, no Veleiros do Sul) passa por essas virtudes.
Conheço o Paulinho há muitos anos. Quando eu lhe disse que estava orgulhoso por ser amigo dele, comentou com a simplicidade de sempre:
- Se não é os "peludo" se empenhar…
Resgate de Placa
Foi um resgate de placa. Na noite de 30 de junho de 2009, Paulo Morel foi homenageado por amigos do Popa.com.br reunidos na casa do Comandante Paulo Silveira, em Porto Alegre, com privilegiada vista para o Rio Guaíba.
Em encontro muito animado reunindo velejadores gaúchos, com o som ao vivo da gaita ponto do famoso gaiteiro Orlandinho, Paulo Morel recebeu uma placa comemorativa à sua façanha, proposta pelo Comandante Luiz Morandi, e oferecida pelo Comandante Fernando Maciel.
Este relato baseou-se no depoimento de mais de uma fonte. No entanto, é possível que algumas informações não sejam precisas ou que estejam incompletas, ou ainda, que tais informações possam ter mais de uma versão.
O objetivo deste artigo não é produzir um relatório nem fazer avaliação da responsabilidade das partes envolvidas, mas sim, unicamente enaltecer as qualidades de um marinheiro que salvou a vida de um desconhecido, indo além das atribuições de sua responsabilidade.
Pesou tremendamente no desfecho deste incidente, o caráter, a boa índole e a dedicação de Paulo Morel.
Dentre os tantos comentários enviados para o Popa.com.br, segue abaixo o recebido do Cmte Luiz Morandi relatando mais uma proeza do Paulinho.
1º Jul 2009
Luiz Morandi
Ao Velho e Peludo marinheiro a nossa homenagem.
Final de 2004, voltando de um belo fim de semana no Morro do Côco, e não querendo fazer ondas para os amigos que estavam na Chico, escolhemos navegar por fora da Ilha, em direção a Ponta Grossa.
Nos afastamos bem da Vovó, mas acabamos batendo no final das Netinhas. Na mesma hora começamos a notar a entrada de água, onde nem as bombas resolviam. Coletes colocados, ligamos para o amigo Pablo Miguel que já se deliciava em um churrasco na Ilha. Em menos de dois minutos lá estava o Pablo com sua esposa nos dando apoio moral, logístico, reboque e manobras que nos colocaram com segurança na praia da Ilha, já com a lancha cheia de água.
Aí entra em cena o nosso velho e protetor marinheiro Paulo Morel, velho como experiente, pois ele é um jovem sempre pronto a ajudar, com serenidade e competência. Veio voando com sua lancha resgate. Nos deu apoio moral, mergulhou, calafetou o buraco deixado pela rabeta, e me garantiu:"Vamos voltar ao Clube". Eu, sinceramente, queria abandonar o barco, mas diante da frase proferida com muito orgulho: "Comandante não abandona o barco na praia, vamos encarar". Acabei aceitando até pelo constrangimento do esforço que fez para resolver o problema.
Lá fomos nós. A Chamonix, eu e o Paulo com sua valente lancha nos rebocando. Mais uma vez o amigo Pablo nos acompanhou, pois acho que ele não acreditava que faríamos a travessia, sem naufragar. Durante 4 horas, sob um sol escaldante, o Paulo nos rebocou, animou e sempre calmo, nos trouxe em segurança. Quando chegamos, não se fez de rogado e se jogou na água poluida para arrumar a carreta embaixo da lancha.
Por isso esta homenagem um pouco extensa, mas traduz a nossa admiração e respeito ao velho e profissional amigo Paulo Morel, homenageado pelo POPA.
Luiz e Carmen
CHAMONIX
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Paulo Morel faleceu na pandemia, em 2021.
Originalmente publicado no Popa.com.br em 1º Jul 2009